Jogo da seleção foi teste de uso do futebol por Bolsonaro contra Globo


A surpreendente transmissão da partida entre as seleções brasileira e peruana pelo canal estatal TV Brasil foi um primeiro teste do uso político do futebol pelo governo Jair Bolsonaro e se insere na disputa entre o presidente e a Rede Globo.


Sem dinheiro ou estrutura para competir no mercado, o governo conta com a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) para fazer novas jogadas pontuais, sejam elas transmitir outros jogos da seleção ou ampliar a veiculação das séries inferiores do Campeonato Brasileiro.


O objetivo: incomodar um mercado em que a Globo dá as cartas e, de quebra, fazer propaganda do governo aproveitando a inédita audiência insinuada pelo experimento desta terça (13).


O jogo em Lima, válido pelas eliminatórias da Copa-2022 e vencido por 4 a 2 pelo Brasil, não ia ser transmitido em TV aberta no país, apenas em canais fechados e por streaming pago na internet.


O problema, segundo a Folha de S.Paulo ouviu de envolvidos nas negociações, foi o preço pedido pela Federação Peruana de Futebol, mandante da partida, pelos direitos de transmissão: astronômicos US$ 2,5 milhões (cerca de R$ 14 milhões).


Com o não da Globo e de outras emissoras consultadas, o valor caiu pela metade, mas ainda assim foi considerado irreal.


A emissora fluminense prefere trabalhar com pacotes, e comprou os direitos dos nove jogos da seleção como mandante nas eliminatórias por um preço que o mercado estima em US$ 8 milhões (quase R$ 45 milhões).


Com o impasse, o governo viu uma janela de oportunidade. Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro tem uma relação conflituosa com a Globo, de quem prometeu cortar verbas de publicidade estatal quando eleito.


Ao longo do governo, emissoras mais próximas do governo, como a Record e o SBT, viram crescer sua fatia de publicidade estatal, enquanto a líder do mercado a viu reduzir. A Secom (Secretaria de Comunicação Social) foi ocupada por Fábio Wajngarten, que é visto na Globo como um adversário aberto da emissora, crítico contumaz dos procedimentos do mercado publicitário de televisão no país.


No rearranjo feito para acomodar o PSD no governo, a Secom foi incorporada ao Ministério das Comunicações e Wajngarten virou secretário-executivo da pasta liderada pelo deputado Fábio Faria (RN).
Wajngarten procurou a CBF para saber sobre as condições de transmissão. Sem receber uma resposta, o secretário postou no Twitter a ideia. A confederação então afirmou que nada poderia fazer, dado que os direitos eram dos peruanos.


Como sempre nesse mercado, a opacidade impera e valores não são explicitados. Ao longo do dia, o silêncio imperou até que, às 19h50, o presidente da CBF, Rogério Caboclo, procurou o governo para informar que havia conseguido a liberação do sinal para uma TV pública, de graça.


O jogo começaria às 21h, e foi montada uma operação emergencial para a transmissão. O veterano comentarista esportivo Márcio Guedes, que passou pela finada Rede Manchete, foi chamado -ele já faz parte do quadro da TV Brasil.


Aí entrou a sorte. O jogo, em que o Brasil ficou atrás no placar duas vezes, tinha tudo para ser um mico. Mas Neymar acabou brilhando com 3 dos 4 gols brasileiros, superando a marca de Ronaldo como artilheiro da seleção.


Isso acabou se refletindo na audiência. A TV Brasil é conhecida como TV traço, por não ser assistida por ninguém. Com o jogo, alcançou segundo dados preliminares 3 pontos em média na Grande São Paulo, ocupando o quarto lugar no quadro geral. Em Brasília, bateu 8 pontos e ficou atrás só da Globo.


Com o palanque montado, veio a propaganda. Além dos “abraços” enviados pelo narrador André Marques para Bolsonaro, além de agradecimentos a Caboclo e Wajngarten, que deram um indisfarçável gosto de anos 1970 à transmissão, o intervalo foi ocupado parcialmente por uma boletim improvisado trazendo notícias positivas sobre o governo.


No Palácio do Planalto, a operação de guerrilha foi vista como um sucesso. Obviamente, não há a pretensão de ocupar o espaço da Globo, mas a ideia é difundir a tese segundo a qual o mercado seria monopolizado pela emissora do Rio e que isso pode ser desafiado.


Postagens bolsonaristas em redes sociais já na noite do jogo iam nesse sentido. O governo identifica fissuras na histórica aliança entre a CBF e a Globo que podem ser exploradas pontualmente. A Folha procurou Wajngarten para comentar a estratégia, sem sucesso.
Hoje, a TV Brasil transmite a Série D do Brasileirão. A Série C, cujos direitos para transmissão por streaming são desde 2019 do grupo multinacional Dazn, está na mira do canal estatal.


O governo acredita que ela pode acabar de graça em suas mãos -a Série A (R$ 1,5 bilhão por temporada de cotas de TV) e a B (R$ 170 milhões).


O sucesso, do ponto de vista do governo, da operação de Lima também coloca pressão sobre o Congresso.
Em junho, o governo editou uma medida provisória apelidada de Lei do Mandante. Ela dá direitos sobre imagem e arena de jogos para o dono da casa, enquanto hoje eles são divididos entre os dois adversários.


A MP foi apoiada por times das séries A e B, que veem na medida uma forma de evitar os apagões de transmissão de jogos com menor potencial de audiência. Sua tramitação não foi priorizada por Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, apontado no Planalto como aliado da Globo.


O texto caduca na sexta-feira (17), quando completa 120 dias parada no Congresso. A transmissão quase clandestina do Brasil x Peru virou um argumento de última hora em favor da maior flexibilidade neste mercado.


Com isso, curiosamente Bolsonaro se aproxima do modus operandi dos governos esquerdistas do clã Kirchner na Argentina, que o brasileiro adora criticar. O casal de presidente Néstor (2003-07) e Cristina (2007-15), em sua briga com os meios de comunicação, passou a investir em transmissão de jogos de futebol.


Na Copa de 2014, a Casa Rosada chegou a comprar todos os direitos de transmissão dos jogos no Brasil, sem nunca revelar os valores envolvidos. Agora, o modelo inspira ao menos parcialmente o Planalto, pelo mesmo motivo: buscar espezinhar o grupo de mídia que identifica como rival político.


Entre executivos da Globo, há apreensão em relação ao ano de 2022, quando será reanalisada sua concessão de televisão. Não restam dúvidas de que Bolsonaro irá buscar atrapalhar o processo, emulando o que fez Hugo Chávez com o grupo RCTV na Venezuela em 2006.


Em abril, o próprio presidente disse: “Não vou dar dinheiro para vocês. Globo, não tem dinheiro para vocês. Em 2022… Não é ameaça não. Assim como faço para todo mundo, vai ter que estar direitinho a contabilidade, para que você [Globo] possa ter sua concessão renovada. Se não tiver tudo certo, não renovo a de vocês nem a de ninguém”.


Na prática, contudo, não é tão simples, dado que a Lei Geral de Telecomunicações tem instrumentos para tentar limitar a possibilidade de pressões políticas na renovação de concessões. O que não quer dizer que o governo não possa tentar.


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