Catorze pessoas foram indiciadas pela Polícia Civil por participarem de uma festa que terminou com o espancamento da médica Ticyana D’Azambuja, de 35 anos, em 30 de maio, no Grajaú (zona norte). As 14 pessoas vão responder por infração de medida sanitária, por participarem de uma aglomeração em período em que, devido à pandemia de covid-19, isso é proibido. Cada uma pode ser condenada a até um ano de prisão.
Duas pessoas também vão responder por lesão corporal grave, e outras três foram indiciadas por lesão corporal leve. Outras, ainda, responderão também por prevaricação (crime praticado por funcionário público quando deixa de cumprir seu dever funcional).
A investigação foi realizada pela 20ª DP (Via Isabel), que anunciou nesta terça-feira, 7, a conclusão do inquérito, enviado ao Ministério Público do Estado do Rio (MP-RJ), ao qual caberá denunciar os acusados, se considerar convincentes os indícios de autoria.
Em 30 de maio, a médica chegou em casa, na rua Marechal Jofre, após um plantão de 24 horas em hospital onde tratava doentes de covid-19, e não conseguiu dormir durante a tarde porque, na casa ao lado, seu vizinho Rafael Martins Presta, comerciante que completava 38 anos, comemorava seu aniversário em festa com convidados e música alta. Por conta da pandemia, aglomerações estão proibidas no Rio de Janeiro desde março, mas essa festa fazia troça com a proibição – usava até uma referência à covid-19 como tema de copos personalizados.
Ticyana diz ter tocado a campainha da casa e tentado pedir que o volume da música fosse reduzido. Mas foi ignorada, e então pegou um martelo e com ele quebrou um espelho retrovisor e trincou o vidro traseiro do carro (um Mini Cooper Paceman modelo 2014) do policial militar Luiz Eduardo dos Santos Salgueiro, um dos convidados da festa.
O vizinho e alguns convidados então saíram da casa. A médica tentou fugir correndo e pediu auxílio a um motoboy que passava pela rua, mas foi alcançada por Presta e um amigo. O vizinho da médica então a imobilizou, no meio da rua, e aplicou um golpe que causou o desmaio de Ticyana. Ela foi arrastada por Salgueiro, acordou e foi ameaçada e agredida por outros convidados da festa. As agressões foram testemunhadas por várias pessoas que não participavam do evento, inclusive bombeiros de um quartel que funciona em imóvel vizinho à casa de Presta.
Um outro vizinho de Ticyana foi o único a tentar intervir, impedindo a continuidade das agressões e ameaças, e acabou agredido por Rafael Pereira, outro convidado da festa. Imagens de câmeras de segurança e mesmo gravadas por testemunhas mostram as condutas dos envolvidos.
A médica foi socorrida após ter o joelho esquerdo quebrado e as mãos pisoteadas. Em 13 de junho ela se submeteu a cirurgia que instalou dois parafusos no joelho. Tirou o gesso no dia 25, e até agora o movimento do joelho não voltou ao normal – e não existe garantia de que voltará. Por isso, segue sem trabalhar, e como ganhava por plantão (não tinha emprego fixo) está também sem salário. Ticyana tem um filho de dois anos e dez meses.
Como Ticyana já está há mais de 30 dias incapacitada de praticar as atividades de rotina, conforme comprovou exame feito no Instituto Médico Legal, o delegado André Neves, responsável pela investigação do caso, indiciou Presta e Rafael Pereira por lesão corporal de natureza grave, cuja pena varia de um a cinco anos de prisão. Se o problema no joelho se tornar permanente, a acusação poderá ser alterada para lesão corporal de natureza gravíssima, com pena de dois a oito anos de prisão.
Como, entre os convidados, havia policiais civis e militares que nada fizeram para impedir as agressões, esses agentes foram indiciados por prevaricação, assim como os bombeiros que estavam no quartel, testemunharam as agressões e não intervieram. Segundo a Polícia Civil, as corregedorias da Polícia Civil, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros foram notificadas para abertura de procedimento disciplinar contra os agentes acusados de prevaricação.
A médica afirmou à TV Globo ter ficado satisfeita com a investigação: “Todos foram rapidamente identificados, então eu vejo que o trabalho da polícia foi muito bem feito e espero que isso realmente se reflita depois com a justiça sendo feita ao final do processo.”
O Estadão tentou localizar os indiciados ou seus representantes, mas não havia conseguido falar com nenhum deles até a publicação desta reportagem. O espaço está aberto para as defesas.