Aos 72 anos, David Quammen não vê “um futuro atrativo” para a humanidade. O que poderia ser entendido como um olhar alarmista é, na verdade, a avaliação de quem dedicou décadas de sua vida a estudos sobre a natureza, os animais e também seus vírus.
Em 2012, o divulgador científico e autor de 15 livros publicou “Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic” (em tradução livre, Spillover: infecções animais e a próxima pandemia humana). A partir de pesquisas de campo e entrevistas com pesquisadores, numa abordagem sobre o contato humano com os animais e seus vírus, a obra prevê uma pandemia similar à vivida atualmente com o novo coronavírus. No livro, ela é chamada pelos cientistas de “The Next Big One” (“A próxima grande”, em português).
E foi com tanto tempo de pesquisa e observação que, hoje, o escritor norte-americano conclui que nós devemos ter mudanças drásticas de comportamento, como redução populacional e a adesão ao veganismo, a fim de preservar o mundo e um bom convívio entre as espécies.
‘Temos que repensar escolhas’, diz autor de livro que previu pandemia
David Quammen vê humanidade como responsável pela crise, fala sobre danos à natureza e sugere redução populacional e adesão ao veganismo
-
Guilherme Padin, do R7
‘Estamos causando uma disrupção do nosso mundo natural’, diz Quammen
Ronan Donovan
Aos 72 anos, David Quammen não vê “um futuro atrativo” para a humanidade. O que poderia ser entendido como um olhar alarmista é, na verdade, a avaliação de quem dedicou décadas de sua vida a estudos sobre a natureza, os animais e também seus vírus.
Em 2012, o divulgador científico e autor de 15 livros publicou “Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic” (em tradução livre, Spillover: infecções animais e a próxima pandemia humana). A partir de pesquisas de campo e entrevistas com pesquisadores, numa abordagem sobre o contato humano com os animais e seus vírus, a obra prevê uma pandemia similar à vivida atualmente com o novo coronavírus. No livro, ela é chamada pelos cientistas de “The Next Big One” (“A próxima grande”, em português).
E foi com tanto tempo de pesquisa e observação que, hoje, o escritor norte-americano conclui que nós devemos ter mudanças drásticas de comportamento, como redução populacional e a adesão ao veganismo, a fim de preservar o mundo e um bom convívio entre as espécies.
Por conta de seus posicionamentos, Quammen não tem filhos e viaja apenas a trabalho. Diante das circuntâncias, ele decidiu que irá refletir ainda mais sobre suas escolhas. Para o autor, a pandemia da covid-19 é de responsabilidade humana. “Não é uma desgraça da qual somos vítimas. Isso reflete no que estamos fazendo”, afirma.
Embora epidemias e pandemias existam há muito tempo, ele argumenta que hoje, com 7,7 bilhões de pessoas vivendo concentradas em cidades e viajando o mundo com frequência, os vírus têm um vasto campo de possibilidades.
Por que doenças vindas de virus animais são tão comuns nas últimas décadas?
Doenças zoonóticas – ou infecções animais transmissíveis para humanos – têm acontecido mais e mais nas décadas recentes. Não é algo novo: vírus têm vindo de animais selvagens para os humanos desde que interagimos com os animais selvagens, mas têm acontecido mais. Há uma lista de doenças: Machupo, na Bolívia, na década de 60, o vírus Marburg, vindo dos macacos, em 1967. E também o SARS, nos anos 2.000, vindo dos morcegos, e agora esse coronavírus, que também veio dos morcegos.
A razão para estar acontecendo mais é presumidamente porque há mais humanos e com mais contato com animais selvagens portadores desses vírus. Todos os animais selvagens carregam vírus, mas estamos tendo mais contato com eles, dando aos vírus a oportunidade de nos infectar. E, se eles o fazem, eles podem se replicar no corpo humano e serem transmitidos de um humano para o outro. Eles têm esse vasto campo de possibilidade, com 7,7 bilhões de pessoas vivendo concentrada em cidades, juntas e próximas, viajando rapidamente e continuamente em aviões.
Então, o vírus que entra em um humano e encontra como se transmitir poderá infectar todo o planeta. E é o que esse vírus, da covid-19, está fazendo.
Como os governos estão lidando com esta pandemia?
Alguns governos estão sendo bem efetivos, há uma grande disparidade entre a preparação e a efetividade da resposta. Por exemplo, creio que a Coreia do Sul e os Estados Unidos tiveram seus respectivos primeiros casos no intervalo de um dia (20 e 21 de janeiro).
A Coreia do Sul lidou com isso muito eficientemente: isolando os infectados; realizando testes na população, rastreando pessoas que tiveram contato com doentes e colocando a pessoa em quarentena forçada por duas semanas. Houve também uma comunicação pública clara, consistente e compreensível a todos.
Nos EUA, não temos acesso à saúde pública e nem estrutura com capacidade para lidar com a sobrecarga de casos registrados. Além disso, tivemos uma comunicação pública inconsistente, confusa e mesquinha por nosso governo federal. Agora, temos mais casos e mais mortes do que qualquer outro país no mundo. E aqui estamos, um país rico que tinha que ser capaz de enfrentar a pandemia. Há equipamento, hospitais, tecnologias de rastreamento e nós falhamos para controlar a doença.
Esses dois exemplos eu colocaria em dois extremos de como os governantes lidam com a pandemia.
O que os governantes poderiam fazer para lidar melhor?
Precisamos de mais testes e mais diagnósticos, testar as pessoas o máximo possível, descobrir quem está infectado e fazer o isolamento dessas pessoas.
Se alguém tiver teste positivo, mesmo que não mostre sintomas ainda, não deve estar trabalhando, tem que se isolar em casa ou, se o caso for grave, num hospital. Mas, é claro, são necessárias pesquisas para isso. Pesquisas para produzir testes, para isolar as pessoas e monitorar seus isolamentos.
E não teremos as pesquisas enquanto não tivermos a vontade política, governos dizendo: ‘sim, nós levamos esse problema seriamente. Vamos investir dinheiro e capital político para lidar e controlar isso pela segurança do nosso povo’. Por enquanto, não temos essa mensagem de maneira consistente.
Precisamos seguir batendo nesta tecla o máximo que pudermos, de que isso não é uma gripe comum. A taxa de 6% de fatalidade, que há no Brasil (dados de 23/04, data da entrevista), é 60 vezes maior que uma gripe comum. É muito mais sério, e pode continuar matando muitas pessoas.
Que conclusões você tirou sobre a pandemia de coronavírus?
Diziam que ninguém poderia prever. E isso é mentira. Os cientistas viram isso chegando. Cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan, na China, estudam os coronavírus em morcegos pelos últimos há 10 ou 15 anos. E há cinco anos eles estavam retirando amostras de morcegos em uma caverna na província de Hunan, a 1.600 quilômetros de Wuhan, e descobriram uma grande diversidade de tipos de coronavírus.
Eles escreveram artigos dizendo que alguns desses coronavírus tinham a capacidade de infectar pessoas. Os pesquisadores sequenciaram o genoma e concluíram que o vírus podia se anexar às células humanas, se replicar e se espalhar.
Três anos atrás, os pesquisadores chineses publicaram este artigo científico* falando sobre esses tipos de coronavírus, e um deles era esse de agora. Eles disseram que o vírus poderia causar potencialmente uma pandemia. Mas os políticos prestaram atenção? Não. E agora estamos aqui. Nós precisamos ouvir a ciência.
*o artigo ao qual David se refere, entitulado “Discovery of a rich gene pool of bat SARSrelated coronaviruses provides new insights into the origin of SARS coronavirus”, foi escrito em fevereiro de 2017 e publicado em novembro daquele ano
Há uma pesquisa que fala sobre a possibilidade de coronavírus e animais viverem há milhões de anos juntos…
É possível. Os vírus estão por aí desde sempre. Não há nada ilógico nisso. Eu afirmaria isso, para ser sincero. Um dos reflexos da longa relação entre o coronavírus e os morcegos, por exemplo, até onde sabemos, é que esses animais ficam doentes apesar de infectados. Esse tipo de coronavírus se desenvolvem em pouca abundância e apenas sobrevivem na natureza. É uma estratégia a longo prazo.
Mas esses vírus são também capazes de estratégias de curto prazo. Então, quando chegam a um hospedeiro novo, se torna um desafio para ambos. No caso dos humanos, nosso sistema imunológico responde tentando eliminar o invasor, e eles respondem tentando replicar-se o mais rápido possível e transmitindo-se para outros organismos. E em alguns casos, eles já mutaram e se adaptaram.
Nós temos responsabilidades nesta pandemia?
Sim, essa pandemia não é uma desgraça da qual nós, humanos, somos vítimas. Quando se reverte numa epidemia ou pandemia, isso reflete no que os humanos estão fazendo. E o que estamos fazendo?
Primeiro de tudo, humanos sempre se alimentaram de animais selvagens. Mas agora há 7,7 bilhões de nós no mundo. Somos famintos, queremos comida e não só carne selvagem, todos os tipos de comida. Queremos também outros recursos, como madeira, minérios, energia fóssil. Além disso, existe a vontade de viajar pelo mundo estamos se reproduzindo.
Tudo isso causa uma disrupção do nosso mundo natural, trazendo os animais selvagens num contato forçado e próximo aos humanos. Isso da ao vírus que esses animais carregam uma oportunidade de infectarem nosso organismo. E isso é pelas coisas que nós estamos fazendo, e não pelas coisas que morcegos ou pangolins fazem. Somos nós. É nossa responsabilidade.
A conclusão não pode ser ‘se o vírus vem dos morcegos, devemos nos livrar dos morcegos’, mas ‘se os morcegos carregam vírus, devemos deixá-los em paz’. Temos que deixar os morcegos e as florestas em paz. Temos que nos preocupar com a fome pelo mundo, e de uma forma que não seja disruptiva com os sistemas selvagens.
Essa pandemia é uma oportunidade para repensarmos nosso contato com os animais e a quantidade de carne que comemos?
Sim, acredito que essa seja uma das coisas importantes sobre essa pandemia. Temos que repensar todos os nossos usos de recursos, todas as escolhas que fazemos. O que comemos, quanta carne nós comemos. Vem de grandes fábricasou de pequenos fazendeiros criando diferentes tipos de animais e plantas num sistema de diversidade? Devemos comer mais vegetais e menos carne? Sim.
Mas, apenas entrar numa dieta vegana ou vegetariana não é a solução enquanto as pessoas ainda tiverem filhos. Essa é uma das escolhas também: se decidir ter filhos, quantos você terá? Se você for vegetariano e tiver quatro crianças, por exemplo, ainda estará causando um grande impacto na natureza.
A uma combinação de todas essas coisas. Quantos filhos temos, quanta carne comemos, o quanto viajamos. Eu viajo muito a trabalho, não a lazer. Eu preciso encontrar maneiras de viajar menos. Há uma responsabilidade nisso. Não tenho filhos. Não sou um puro vegetariano. Esse evento me forçará a reexaminar essas escolhas e espero que force outras pessoas também.
O veganismo ou o vegetarianismo é uma das escolhas que as pessoas têm que repensar. Quanta carne vão comer e se comerão carne. É com certeza uma das preocupações neste tipo de situação.
Grandes fábricas foram, por exemplo, um dos transmissores do vírus Nipah, na Malásia. Um vírus que veio de morcego, mas que não veio diretamente deles. Passou de morcegos para porcos de fazendas industriais, e desses porcos para as pessoas. Então, sim, o que comemos, quanto comemos de carne e se comeremos carne é uma das decisões. Logo junto a isso está a importância da decisão de quantos filhos teremos, se tivermos.
Temos que pensar em como nós votamos, como elegemos líderes, especialmente para as pessoas que precisam de mais dinheiro para viver e comer, que não têm casa e cuidados de saúde. Temos que pensar a respeito disso.
A Terra tem poucos animais selvagens e seus vírus se tornaram vírus humanos.
Estamos vivendo num planeta que está inteiramente voltado aos humanos se alimentarem, viajando, tendo suas conveniências. Não há mais animais selvagens e diversidade nos ecossistemas. E ainda há muito mais vírus circulando pelo planeta. Eu não acho que seja um futuro atrativo. Espero que não sigamos por este caminho. Mas precisamos começar a tomar decisões agora para evitar isso.