Reportagem da BBC no campo de Moria, na ilha grega de Lesbos, retrata um local desumano, marcada pela violência e pela falta de higiene. Sobrelotação do campo afeta particularmente as crianças, que, em casos extremos, chegam mesmo a tentar o suicídio. Acordo entre União Europeia e Turquia para conter fluxo migratório contribuiu para situação “onde a dignidade humana é negada”.
Estávamos em março de 2016 quando a União Europeia e a Turquia chegaram a um acordo para conter o fluxo de refugiados que tentava chegar à Europa. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), nos dois meses que antecederam o acordo, só à ilha grega de Lesbos chegaram 46 mil refugiados. Um mês depois, o número caiu para 1.766.
Esta diminuição deveu-se, entre outros fatores que geram enormes críticas junto de Organizações Não Governamentais (ONG) e grupos de ativistas, ao facto de o governo grego ter confinado refugiados e migrantes a cinco ilhas gregas, isto enquanto dura o tratamento do processo de asilo.
Em Lesbos, um dos campos que recebeu refugiados foi o campo de Moria. Deste campo, chegam relatos de condições desumanas, de uma violência extrema, marcada por uma rotina onde escasseiam as medidas de higiene.
Uma reportagem da BBC, publicada esta terça-feira, dá conta de crianças de 10 anos de idade que estão a tentar o suicídio. “É algo que vemos constantemente”, desabafa Luca Fontana, responsável da organização Médicos Sem Fronteiras, que lamenta a falta de atuação das autoridades. “Apesar do facto de querermos levar as crianças rapidamente para Atenas, assim que possível, não está a acontecer. As crianças continuam aqui”, lamenta.
As crianças que chegam às instalações das ONG para serem assistidas têm, frequentemente, problemas de pele causados pela falta de higiene no interior do campo. Para além disso, há registo de doenças respiratórias causadas pelo gás lacrimogéneo lançado pela polícia como forma de conter confrontos dentro do campo.
Atualmente, no campo de Moria, vivem oito mil pessoas, isto num local onde, no máximo, deveriam viver duas mil.
O campo abriu em 2015 e, inicialmente, estava designado como um posto transitório, destinado a migrantes que deveriam lá ficar durante os dias, antes de partirem para outro destino na Europa, no entanto, muitos estão lá presos há vários anos.
Entre as condições degradantes no campo, que já levou várias ONG a abandonar, em protesto, o local, está o constante cheio a esgoto, uma sobrelotação que torna a vivência impossível. Para cada 70 habitantes do campo, há apenas uma casa de banho. Muitas pessoas vivem em cabines móveis, outros instalações improvisadas, e há tendas que albergam 17 pessoas.
Violência, sectarismo e racismo
No início do ano, a Al Jazeera publicou uma reportagem que alertava para as condições desumanas em Moria. A estação árabe referia que “cinco mil pessoas vivem em pobreza extrema”, num campo que é “uma prisão”. Nessa altura, o mayor de Lesbos, Spyros Galinos, avisou que os campos da ilha corriam o risco de se transformar em “campos de concentração, onde a dignidade humana é negada”.
Cerca de oito meses depois, a reportagem da BBC demonstra um campo ainda mais sobrelotado, em que a violência, potenciada pelo tribalismo e pelo racismo, se tornou a rotina.
Em maio, conta a estação britânica, centenas de curdos tiveram de fugir de Moria, devido a conflitos entre membros da população curda e da população árabe. Mas os conflitos não se ficam por aqui. “Descobrimos que já existia sectarismo e racismo, seja entre sunitas e xiitas, seja entre curdos, árabes ou afegãos”, conta Ali, um dos refugiados que viva em Moria, ouvido pela BBC. Ali fugiu da Síria, e relata que, em Moria, encontrou um cenário “ainda mais feio” do que no seu país natal. Os confrontos setários no país foram levados para o campo.
Luca Fontana não tem dúvidas, Moria é o pior sítio em que esteve na vida. E este responsável dos Médicos Sem Fronteiras passou por vários países africanos afetados pelo surto de Ébola há alguns anos.
“Nunca tinha visto o nível de sofrimento que aqui testemunho todos os dias”, diz Fontana. “Mesmo aqueles afetados por Ébola tinham a esperança de sobreviver ou tinham o apoio da família, da sociedade, da aldeia, dos amigos, dos parentes. Aqui, a esperança foi levada pelo sistema”.