O filho da empresária Nathália Paschoalli, Enrico, tem apenas cinco anos, mas já faz inúmeras perguntas sobre sexualidade desde muito pequeno.
“Assim que começou a formular frases, o Enrico perguntava porque a mamãe era diferente do papai, por que o ‘pipi’ dele era menor que o do papai, por que ele não tinha pelos no corpo etc.”, conta a empresária.
As perguntas do pequeno começaram a ficar mais complexas desde que ele fez quatro anos. “Enrico agora tem pedido a nós um irmãozinho e pediu se podia ele carregar o irmão na barriga. Aí teve o drama de descobrir que meninos não podem engravidar.”
A naturalidade com que Nathália e o marido tentam explicar as questões de sexualidade para o filho vem da criação que a empresária recebeu da família. Filha de enfermeira e professora de enfermagem, Nathália conta que sempre acompanhava a mãe em palestras sobre Aids e doenças sexualmente transmissíveis.
“A educação sexual que recebi dos meus pais foi muito prática, informativa e pouco romantizada”, lembra.
Nem toda pessoa, contudo, recebe educação sexual durante a infância. Para muitas famílias, o tema ainda é tabu dentro de casa.
Para o médico Jairo Bouer, educador e pesquisador sobre educação sexual, a falta de informação sobre sexualidade entre os jovens no Brasil contribui para que sejam altos os números de transmissão do HIV, o vírus causador da Aids, e gravidez precoce entre eles, mesmo com a pílula do dia seguinte e inúmeros meios contraceptivos disponíveis à população.
“Hoje, crianças e adolescentes podem pesquisar suas dúvidas na internet ao invés de perguntar aos pais. Por isso, de modo geral, vejo que as crianças se deparam mais cedo com o tema da sexualidade. O problema não é buscar a informação, e sim se deparar com informações erradas e inadequadas para cada fase de desenvolvimento da criança”, diz Bouer.
O último relatório da Unaids, programa das Nações Unidas contra a Aids, mostrou que o Brasil é responsável por 40% das novas infecções por HIV na América Latina.
Dados de 2017 do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostraram que uma em cada cinco crianças no Brasil é filha de mãe adolescente, sendo que 58% dessas adolescentes não estudavam quando engravidaram.
Segundo dados de 2006 a 2015 da UNFPA, órgão da ONU responsável por questões populacionais, o país tem a 7ª maior taxa de gravidez na adolescência na América do Sul.
“A educação sexual deve começar antes dos dez anos”, defende Bouer. “Somente com informação correta aos adolescentes, sem tabus e julgamentos, iremos reduzir os altos números de sexo sem segurança e gravidez na adolescência na adolescência.”
Desenvolvendo a identidade sexual
O primeiro contato que temos com a sexualidade, de acordo com Cláudia Bonfim, doutora em Educação e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Sexualidade do Ministério da Educação e autora do livro Educação Sexual e Formação de Professores: da Educação Sexual que Temos à que Queremos, é durante a amamentação.
“A sexualidade nos é apresentada de maneira não verbal: pelo toque dos pais, pelo modo como a mãe amamenta, como o bebê é embalado no colo, como o olham, se o amam etc.”, explica a educadora. “Ou seja, a educação sexual nessa fase se dá especialmente por meio dos comportamentos e experiências afetivas-sexuais que o bebê vivencia através da sexualidade dos pais e do meio em que ele vive.”
A descoberta do próprio corpo se dá após os 18 meses de idade, quando a criança vivencia a fase anal, que vai até os três anos e meio.
“A fase anal trata de um momento em que a criança começa a obter controle dos esfíncteres anais e da bexiga, controlando a micção e a evacuação. Aprender a ter o controle das suas necessidades fisiológicas significa uma nova forma de prazer e gratificação, inclusive pela atenção que lhes é dedicada e dos elogios que recebe quando passam a ir sozinhas no banheiro”, explica Bonfim.
É nesse momento que a criança descobre que tem um órgão sexual, pois é quando começa a manipular estes órgãos, principalmente quando vai ao banheiro. Por isso, a fase anal pode marcar muito a sexualidade da criança, principalmente nos meninos, por terem o órgão sexual externo.
“É importante que os pais a ajudem a criança a reconhecer o corpo nesta fase com naturalidade, sem reprimir suas atitudes, pois o caráter da criança nessa etapa é de reconhecimento corporal, e não erótico”, orienta e educadora.
Bouer explica que também é nessa fase que surgem as dúvidas dos pais sobre como agir diante de comportamentos dos filhos com o próprio corpo.
“Atendo mães que costumam reclamar que o filho fica com a mão no pênis o dia todo. A maior aflição delas é não saber como agir: deveriam conversar com o filho ou fingir que não estão vendo? Eu defendo que deve haver uma conversa com a criança de maneira natural e nunca ignorar o comportamento”, defende o médico.
Nathália vivenciou essa fase com Enrico – sua primeira reação foi pedir orientação ao médico do menino.
“Estávamos na sala e o Enrico passou por cima de um brinquedo enquanto engatinhava. Ele tinha pouco mais de um ano. Sentiu alguma coisa ali e voltou, num movimento repetitivo. Relatamos ao pediatra e fomos orientados a não tratarmos aquilo como tabu, nem dar a ele a impressão de que masturbação era errado ou proibido”, conta a mãe.
A solução encontrada pela empresária e pelo marido foi tentar distrair Enrico da ação, propondo uma atividade que desviasse a atenção do órgão sexual.
“Depois, com ele maior, explicamos que tocar no próprio pênis é gostoso, não tem problema, mas que não é legal fazer na frente das pessoas por ser um momento privado dele com o corpo dele”, relata ela.
Quando conversar
“Em um primeiro momento, cabe aos pais ajudar a criança a construir sua sexualidade de maneira positiva”, afirma Bonfim.
Mas o que e quando conversar? Para o doutor Bouer, a curiosidade de cada criança deve ser o termômetro dos pais para saber sobre o que e quando falar.
“As curiosidades sobre o corpo são naturais desde muito cedo, e os pais devem sempre responder as perguntas, mas não acho que nessa fase seja necessário dar uma aula para abordar o tema”, explica o médico. “Os pais devem ficar atentos às curiosidades que forem surgindo e sempre explicar dentro da capacidade da criança de entender aquela conversa”, completa.
Os pais também devem considerar que cada criança tem uma personalidade e entender o tempo de cada uma de descobrir o mundo a sua volta.
“Tem crianças mais curiosas, que perguntam sobre tudo; tem as mais tímidas, que provavelmente terão medo de tocar no assunto. De maneira geral, a criança que convive com outras mais velhas que ela começará a perceber seu corpo e o corpo do outro mais cedo que crianças que convivem somente com adultos”, explica o doutor.
Independente de cada caso, para Bouer, o ideal é que conversas sobre sexualidade comecem antes dos dez anos, tanto em casa como na escola. Assim, quando chegarem na adolescência, questões mais complexas, como virgindade, sexo seguro, gravidez etc., serão tratadas com atenção e naturalidade pelo adolescente.
“Se as conversas sobre sexualidade não ocorreram até os dez anos, os pais não deverão escolher estratégias muito invasivas para introduzir conversas sobre sexualidade quando os filhos se tornarem adolescentes, uma vez que eles não foram naturalizados com esse tema na infância”, afirma o médico.
Aposentar a cegonha
Muitos pais se questionam se podem ficar nus na frente dos filhos pequenos e se podem tomar banho juntos.
Para Bonfim, a dica é entender que a maneira como os pais lidam com o corpo refletirá no modo como a criança e o adolescente lidarão com o próprio corpo e o do outro.
“Se os pais sempre tomam banho junto com a criança, geralmente esta fase é bem mais tranquila, pois essas diferenças corporais foram sendo internalizadas com naturalidade, sem a curiosidade de tirar a roupa do outro para ver como é, por exemplo”, explica a educadora sexual.
Nathália conta que ela e o marido sempre tomaram banho com Enrico, e que a primeira pergunta dele sobre sexualidade foi durante um deles.
“Primeiro ele percebeu que eu era diferente dele e não tinha pênis. Depois, me perguntou: ‘Cadê seu pipi, mamãe?'”, lembra a empresária.
E como responder tal pergunta a uma criança?
Segundo doutor Bouer, muitos pais e até professores recorrem a metáforas para explicar temas sobre sexualidade, mas nem sempre essa é uma boa estratégia.
“Se a metáfora ajudar a criança a entender o que está sendo falado, sem gerar mais dúvidas na cabeça dela, é válido. Porém, não vale usar uma metáfora para inventar uma situação que não existe no mundo real, como a história da cegonha que trouxe o bebê”, adverte o médico”. “Precisamos enterrar a história da cegonha.”
A mãe de Enrico conta que tenta simplificar as palavras para explicar de um modo que o filho entenda, dentro do contexto da idade e da experiência de mundo que o menino tem.
“O que nunca fizemos foi contar estórias de cegonha, repolho, ou coisas do tipo. Também somos objetivos: explicamos pontualmente o que satisfaz a curiosidade dele e não avançamos”, conta a mãe.
“Já aconteceu de uma mãe grávida de uma amiguinha de classe do Enrico tentar explicar para eles que o bebê na barriga dela era uma ‘pérola’ que o papai plantou com um beijo e o Enrico dizer: ‘Não é não, tia. O papai planta a sementinha com o ‘pipi’.”
Não diferenciar objetos, cores e comportamentos “permitidos” para meninos e meninas, como forçar as meninas a cruzar as pernas quando sentam ou estimular os meninos a serem agressivos nas brincadeiras, por exemplo, também faz parte de uma educação sexual saudável física e emocionalmente.
“Não ter preconceitos e tabus sexuais começa dentro de casa e na infância. Os pais não devem fazer distinção quanto à utilização de cores e brinquedos entre meninos e meninas. É provado que estes objetos e cores não determinam nossa sexualidade, mas podem interferir na maneira como vemos e respeitamos o sexo oposto e o diferente de nós”, afirma Bonfim.
“O maior problema da ideia da fragilidade feminina e da mulher como um ser mais sensível e do homem como um ser que deve reprimir seus sentimentos e ser forte é que geramos mulheres fragilizadas e submissas e homens insensíveis, brutos e com dificuldades de demonstrar seu afeto”, completa a educadora.
O mais importante de uma educação sexual consciente para crianças é ensinar o que é amar, se relacionar, o que é afeto e privacidade, assim como identificar o que é abuso. Ou seja, a reconhecer, respeitar e defender o próprio corpo e o corpo do outro.
“Por meio da educação sexual, é possível ensinar a criança a não deixar que nenhuma outra pessoa tire sua roupa, toque em seu corpo e em suas partes íntimas. Também deve-se orientar desde pequeno que, caso essas situações ocorram, ela nunca deve ter vergonha e escondê-las, devem comunicar imediatamente os pais”, alerta Bonfim.
“Isso é fundamental para que a criança possa prevenir um abuso ou violência sexual, pois ela saberá diferenciar carinho, afeto, privacidade, de abuso e violência.”