Não é previsão catastrofista. Mas também não são necessários bola de cristal para perceber o perigo iminente: a barreira de contenção natural, que retém as águas do Lago Maravilha quase dez metros acima do nível do rio Madeira desde a histórica enchente de 2014, não chega a 30 metros no ponto mais crítico.
E a água do lago percola por baixo de uma camada de aproximados dois metros de espessura, com variação de 10 a 15 metros de profundidade, que os técnicos chamam de horizonte laterítico. É uma faixa escura e endurecida, conhecida na construção civil como “pedra jacaré”, que pode ser vista ao longo de todo o talude da margem esquerda.
O escoamento, lento e contínuo das águas subterrâneas, arrasta consigo os sedimentos finos de argila e silte, para deixar somente a areia como sustentação da infraestrutura de estradas, portos e edificações.
Isso resulta no recalque ou afundamento das moradias instaladas acima da própria camada endurecida, porém fissurada (rachaduras de contração da argila). Tanto, que, em alguns trechos da margem, ela mergulha para horizontes mais profundos do solo, o que aumenta o pacote de sedimentos sobrejacentes, inconsolidados e instáveis.
Tudo isso já fragilizado pelo desmatamento e remoção da cobertura vegetal, promovidos pela especulação imobiliária e outras atividades predatórias.
É o que causa pavor às centenas de famílias que habitam a região e acompanham, desesperadas, o rápido e sistemático avanço do desbarrancamento das encostas, pela pressão das águas represadas do lago e dos efeitos abrasivos do leito do rio. Eles registram os sinais inequívocos do desastre iminente pelo permanente alargamento das fendas nos terrenos e das constantes rachaduras e afundamentos das moradias.
O agricultor Arnaldo Mendes de Brito, ali nascido há 56 anos, luta desde 2.014 para recuperar sua propriedade dos desastres provocados pela histórica enchente. Ele aponta como exemplo uma porta que dá acesso à cozinha, da qual já foi obrigado a cortar “quatro dedos” para poder fechar. E já perde a conta das rachaduras que foi obrigado a remendar.
Técnicos do Indam que visitaram o local, a convite do advogado Demétrio Justo, constataram ser diversos os fatores – inclusive naturais – que atuam em assustadora conjuminância de forças para a catástrofe que se anuncia.
Os especialistas não sabem precisar “quando” vai acontecer, mas os indicativos garantem que “vai” acontecer. A situação está a tal ponto precária que a próxima enchente, ou até mesmo chuva forte, pode selar o destino, que parece inexorável, de toda aquela região. Eles explicam que, quando as águas represadas conseguirem encontrar mesmo uma pequena fissura que permita romper a barreira, a enchente terá proporções avassaladoras.
Milhões de metros cúbicos de água e entulhos de elevado potencial de destruição serão rapidamente despejados no Madeira para arrastar consigo balsas, dragas, embarcações, portos e tudo o que estiver em seu caminho. Será igualmente imenso o número de vítimas, pois que a velocidade da imensa onda não vai permitir que todos consigam se colocar a salvo.
Curiosamente, todos – e ao mesmo tempo ninguém – podem ser responsabilizados pelo desastre que, na verdade, tem origem em causas naturais. As águas da enchente depositaram milhares de toneladas de sedimentos nos escoadouros naturais do lago, obstruindo-os por completo.
A única iniciativa, desde então, para permitir que a água voltasse a escoar partiu dos próprios moradores, que se abasteciam com a água de um igarapé. Mas seus esforços resultaram muito tímidos, já que encontraram a camada de solo laterítico e somente poderiam avançar com o auxílio de uma retroescavadeira.
Servidores da Prefeitura passaram por lá nas diversas vezes em que construíram recuos na estrada em função dos desbarrancamentos do talude. Mas a máquina, que poderia abrir o canal de escoamento e pelo menos adiar o desastre com apenas um dia de trabalho, nunca chegou.
Das usinas aos garimpeiros, passando pela ponte, pela ocupação desordenada das margens, pela criminosa especulação imobiliária que se instalou, avassaladora, nas terras da margem esquerda do Madeira, a partir do advento da ponte. A culpa atinge o desmatamento e passa também pela exploração econômica dos portos e produção de alimentos.
Sobra culpa para a Marinha, para a Agência Nacional de Águas – ANA, para o Ibama, para a Sedam e até para a Sema. Sobra para o então prefeito da capital, Roberto Sobrinho. E para o ex-governador Ivo Cassol, pela falta de visão ou compromisso, que lhes permitiu desviar para outras áreas – algumas sob investigação – os recursos das compensações socioambientais das usinas, que poderiam ser aplicados com folga na proteção dos taludes.
Mas não há, a priori, que apontar culpados e desencadear uma tempestade punitiva, coisa tão comum no país nos últimos tempos. Não há que apontar o dedo acusador para os portos, ainda que irregulares – considerada sua importância para a economia do estado – pelos problemas que o estacionamento de balsas provocam.
Há que se buscar soluções! Com urgência! Os técnicos esclarecem que a água forma um poderoso turbilhão ao passar por sob as gigantescas balsas estacionadas especialmente à margem esquerda, onde o problema das encostas é mais crítico.
O fundo do rio é literalmente lavado, o que desestabiliza e fragiliza os barrancos onde se desenvolve intenso pisoteio das pessoas envolvidas nas atividades portuária e garimpeira. Os responsáveis sabem disso.
Tanto que contribuem com R$ 2 mil mensais para a associação dos moradores, o que não deixa de ser um absurdo, posto que os portos da margem direita cobram R$ 14 mil. Mas eles poderiam, sem grande desembolso, realizar trabalhos de contenção das encostas pelo menos para impedir que o permanente pisoteio do tráfego de pessoas comprometa ainda mais a situação.
É, no entanto, de extrema gravidade o imobilismo das autoridades, que desenvolvem verdadeiro “jogo de empurra”, segundo os moradores, que já bateram em todas as portas possíveis – inclusive na Assembleia – em busca de ajuda. O desalento está estampado no semblante de antigos moradores, que mesmo conscientes do perigo insistem na luta para salvar suas propriedades.
É o que mostra, com tristeza, dona Maria da Conceição Santana, há 55 anos instalada no local. Ela diz que o barro levado até lá pela enchente contaminou a água do lado e matou cães, gatos e galinhas, além de tornar imprestáveis as terras para o cultivo.
No interior do lago, antes um igapó, todas as árvores morreram com a perenizaçãodecorrente do bloqueio dos canais de escoamento.
Isso produz gás butano altamente tóxico, segundo os técnicos. Mas é a única água que os moradores têm para consumir. Graças ao trabalho braçal do companheiro de dona Maria da Conceição, Éliton Gomes Garcia, e do filho, Evaldo Santana de Barros, toneladas de lama foram retiradas para possibilitar que um singelo fio de água voltasse a correr no lugar onde havia um caudaloso igarapé.
É justamente ali, afinal, que uma retroescavadeira poderá, com algumas horas de trabalho, desobstruir os drenos naturais para escoamento das águas do lago, de forma a restaurar seu equilíbrio em relação ao Madeira. Isso poderá evitar o desastre até que as autoridades despertem do sono letárgico de que foram acometidas desde a chegada das hidrelétricas. Culpá-las é muito cômodo. Mas é preciso trabalhar na recuperação do talude pois, do contrário, o desastre será responsabilidade de todos.
Além da imediata desobstrução do canal de escoamento, outras providências devem ser adotadas, como a retirada dos garimpeiros, cujas dragas comprometem a segurança da navegação ao provocar rápidas mudanças nos canais e favorecer a queda das encostas com a retirada de sedimentos que lhes auxiliam na sustentação perto da margem.
É preciso igualmente desenvolver um amplo programa de contenção dos taludes, com obras de engenharia ou, alternativamente, reflorestamento com culturas arbustivas frutíferas consorciadas com espécies nativas de plantas flexeiras e gramíneas, que controlam a erosão do solo e a abrasividade das águas.
É possível igualmente trabalhar na regularização dos inúmeros portos instalados na margem do rio, sem onerar demais as empresas a ponto de comprometer a atividade economicamente importante para o estado.