Quase 200 casos de estupro não chegam às autoridades policiais no Acre, aponta MP

Ministério Público do Acre (MP-AC) lançou campanha ‘Criança não é brinquedo e adolescente não é objeto’. Acre tem a maior taxa de estupros por habitante do país.

O Acre possui a maior taxa de estupros por habitante do Brasil. Em 2015, o estado registrou 65,2 casos por 100 mil habitantes, enquanto que a taxa média do país é de 22,2. O número parece ainda mais assustador ao analisar um relatório preliminar apresentado pelo Ministério Público do Acre (MP-AC), que aponta que aos 173 casos de estupro nem chegam até as autoridades policiais.


O relatório abordou o número de ocorrências registradas pelo Sistema de Informações de Agravos de Notificações (Sinan) e pela polícia. Em 2015, ano analisado no documento, 524 casos foram registrados pela polícia e 697 pelo Sinan, ou seja, 173 casos não chegaram até o poder público.


Em cima dessa diferença e para criar condições efetivas de punição contra os agressores, o MP-AC lançou a campanha “Criança não é brinquedo e adolescente não é objeto” no último dia 7. As ações fazem parte do projeto “Não Permitiremos!” e tem como objetivo fazer com que os casos de abuso sejam notificados.


No estudo feito pelo órgão, constata-se ainda que crianças e adolescentes são as vítimas mais predominantes desse crime, principalmente, a faixa etária de 10 até 19 anos.


“A gente organizou um mutirão com uma força-tarefa do MP e fizemos um trabalho de cruzamento dos dados, da Saúde e da Segurança Pública e observamos um índice de subnotificação imenso. Vimos que essas vítimas que chegam no Sistema Único de Saúde para serem atendidas, seja por conta da agressão ou já para fazer o parto, isso não é comunicado à autoridade policial”, explica a procuradora de Justiça Patrícia Rêgo.


A campanha, segundo a procuradora, é uma forma de evitar que esses crimes aconteçam e estimular as pessoas a denunciarem para que os autores não fiquem impunes.


“Como esse tipo de crime acaba ocorrendo no ambiente doméstico, a maioria esmagadora dos agressores são pais, padrastos, tios ou vizinhos – pessoas muito próximas ao ambiente doméstico da criança. Para que a criança não fique a sua infância e adolescência sofrendo esse tipo de violência, a gente resolveu fazer uma campanha de esclarecimento para a sociedade, mostrando que é crime e chamando a atenção para a responsabilidade de cada um com relação a isso. Porque quem cala, se omite. Por isso, a campanha diz que não permitiremos”, destaca.


O relatório analisou também 40 dos 400 inquéritos que foram instaurados e não concluídos na Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca), em Rio Branco. E, segundo o órgão, o que paralisa esses processos é a falta de autoria, laudos, provas e até testemunhas.


As cidades analisadas nesse primeiro momento foram a capital e também Brasileia, devido à área de fronteira. O principal propósito do MP é tirar essas crianças do ambiente onde são abusadas e identificar os agressores, fazendo com que os autores desses crimes sejam devidamente condenados.


‘Dói falar’, diz mulher estuprada pelo padrasto

O estupro ou qualquer violência sofrida na infância e adolescência interferem consideravelmente no destino da vítima. Aos 15 anos, uma estudante de psicologia, que terá seu nome preservado, foi resgatada e passou a viver com as irmãs em um abrigo que atende vítimas em vulnerabilidade social na capital acreana.


Atualmente com 27 anos, casada e mãe de 3 filhos, ela conta que o padrasto começou os abusos quando ela tinha apenas seis anos. Ela e a irmã, dois anos mais nova, eram as vítimas e só conseguiram falar sobre o crime quando a mais nova engravidou do agressor.


“Contamos para a minha avó, que denunciou e fomos levadas para esse abrigo. Ele só não mexia com a minha irmã mais nova. Na época, eu tinha uns 15 anos e minha irmã que engravidou tinha 13. Minha mãe só ficou sabendo quando a gente já estava no abrigo”, conta.


O homem foi preso e as meninas passaram algum tempo recebendo atendimento para vítimas na casa de apoio. “Para mim, interfere consideravelmente. A pessoa vai se tornar retraída, não vai confiar no sexo oposto e na fase adulta, para conseguir casar e construir um casamento, vai ter muita dificuldade na área sexual. Por isso, é importante esse atendimento que tive”, conta.


Aos 16 anos, ela começou a ajudar voluntariamente na casa onde foi acolhida. Aos 17 saiu do abrigo, fez um curso preparatório para desenvolver a função na casa e atualmente é coordenadora do local que a acolheu e a fez se reerguer após anos de abuso. Ela também está terminando psicologia para atender na entidade.


“A demanda dentro do abrigo tem sido mínima mesmo. Quase não temos meninas vítimas de abuso. Me faz ver que a denúncia tem sido pouca ou a criança não está sendo retirada de dentro desse ambiente onde sofre abuso. E isso é muito preocupante”, pontua.


Ela diz ainda que é muito importante que a vítima seja identificada e tenha apoio da rede de atendimento que é capacitada para receber essa criança ou adolescente.


“Uma casa dessas é preparada para receber essas demandas e essas meninas precisam, porque às vezes os familiares não sabem como lidar com isso. Porque é um tabu, dói falar, tanto que a metodologia é não ficar perguntando, porque a gente sabe o que aconteceu. Pessoas que levam o abuso no silêncio, enfrentam problemas de ansiedade, depressão e problemas conjugais, porque não conseguiram romper lá atrás”, revela.


Na época, o padrasto da jovem foi preso. A irmã, que engravidou do agressor, hoje também é casada e conseguiu seguir após ter o atendimento necessário. Ela relembra ainda que na época dos fatos, elas tiveram o apoio da mãe e em nenhum momento se sentiram desamparadas. “Não tenho nenhum sentimento de culpa em relação a minha mãe, porque ela esteve ao meu lado e no abrigo fui orientada em relação a isso e o apoio da minha mãe só me fortaleceu mais”, finaliza.


PEC quer tornar crime de estupro imprescritível

Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de autoria do senador acreano Jorge Viana quer tornar imprescritíveis os crimes de estupro. Ou seja, não importa quanto tempo foi cometido o crime, o agressor poderá responder por ele.


Se a proposta do senador Jorge Viana for aprovada, o crime de estupro será o terceiro imprescritível a constar na Constituição Federal.


“Estou acrescentando o crime de estupro por conta das características que ele tem. Tem mulheres que sofrem o estupro quando ainda são muito jovens e só vão ter coragem para denunciar quarenta anos depois, quando viram avós. Então, se a gente mandar um recado para os criminosos, dizendo: ‘olha, se cometer um crime de estupro, não importa quanto tempo passe, você vai pagar por ele’, eu acho que a gente ajuda a melhorar a nossa sociedade”, explicou o senador durante entrevista em maio deste ano.


A PEC está pronta para ser deliberada pelo plenário.



Denuncie

O abuso contra crianças e adolescentes pode trazer consequências destrutivas se a vítima não tiver o acompanhamento necessário. O caso se torna ainda mais grave quando o agressor não é identificado e devidamente punido. Por isso, é preciso que os pais fiquem atentos ao comportamento dos filhos e a qualquer indício de abuso denuncie pelo Disque 100.


A psicóloga Bárbara Oliveira explica que muitas vezes o medo de não ter a denúncia levada a sério pode bloquear o jovem ou a criança de falar sobre o abuso.


“50% das vítimas apresentam sintomas de transtorno de estresse pós-traumático. Não só isso, mas também o abuso sexual causa um efeito negativo na autoestima da pessoa, na identidade e de como ela percebe os relacionamentos, o que é carinho e o que é ato sexual”, explica.


A vítima pode apresentar transtornos, além de amnésia psicogênica – perda de memória temporária. Além disso, algumas desenvolvem Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), como se lavar o tempo todo na tentativa de sentir-se limpo do abuso sofrido.


“Às vezes temos uma narrativa cultural que culpa a vítima. A princípio, o primeiro a se fazer é denunciar ao perceber que a criança ou adolescente mudou muito o comportamento, ficando, inclusive, mais reprimida”, orienta.


Além disso, o atendimento a essa vítima é uma forma de tentar amenizar as consequências desse ato que é tão cruel.


Prevenção e conscientização

No relatório divulgado pelo MP constam dados preliminares, mas esse estudo vai continuar e a ideia é se aproximar dos jovens e órgãos de fiscalização para falar sobre abuso e como identificar o crime. A meta é veicular a campanha em 614 escolas estaduais, alcançando 145.816 alunos; 235 estabelecimentos de ensino superior, além de delegacias, unidades de saúde, fóruns e cartórios.


Sobre o nome da campanha “Criança não é brinquedo, adolescente não é objeto”, o MP esclarece que “foi feita uma associação da criança, com o seu universo infantil, lúdico, da inocência, onde ela, a criança, é representada por uma imagem representativa da sua persona: o brinquedo. Portanto, criança brinca, mas não é brinquedo; quanto ao adolescente, fez-se uma associação com os desejos, vontade de ser, de experimentar os prazeres da vida, típicos da faixa etária. Aqui o universo é o dos sonhos: adolescente, deseja, mas não é o objeto do desejo alheio”, pontua o órgão.


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