Como e por que as gangues dominaram as prisões dos EUA e do Brasil

20jul2016--presidio-em-manaus-a-esq-cadeia-nos-eua-e-integrante-do-pcc-envolvido-em-sequestro-em-2006-gangues-se-tornaram-governo-paralelo-em-presidios-argumenta-professor-1469012068819_615x300O trabalho de um economista de 34 anos está sendo visto como a melhor tentativa em muito tempo de explicar como as gangues dominam prisões pelo mundo, da Suécia à Bolívia.


O americano David Skarbek, professor do King’s College de Londres, usa ferramentas da economia – como a chamada teoria da escolha racional – para mostrar como esses grupos se formam e regulam o crime dentro e fora dos presídios.


O livro de estreia de Skarbek recebeu em junho o prêmio de melhor livro de economia política dos últimos três anos, oferecido pela prestigiada Associação Americana de Ciência Política.


Lançado pela Universidade de Oxford e ainda sem tradução no Brasil, The Social Order of the Underworld – How Prison Gangs Govern the American Prison System(A Ordem Social do Submundo – Como Gangues de Prisões Governam o Sistema Prisional Americano, em tradução livre) desafia a noção comum que vê as gangues de prisões americanas como bandos criados por presos apenas para promover racismo e violência.


Pelo contrário: tais grupos, afirma ele, se mantêm exatamente para criar ordem e lucrar onde o Estado não quer ou não consegue atuar.


Das gangues étnicas da Califórnia (Máfia Mexicana, Irmandade Ariana, Família Negra) ao PCC (Primeiro Comando da Capital) no Brasil, o pesquisador descreve no livro e em outros estudos organizações sofisticadas que criam hierarquias, controlam o contrabando nas prisões e solucionam conflitos internos.


Como sujeitos econômicos racionais, sustenta Skarbek, esses grupos fazem tudo isso por um motivo básico: dinheiro. Por ele, vale até moderar o uso da violência.


“Quando as prisões estão calmas e estáveis, as gangues fazem muito dinheiro. Elas podem vender drogas quando não há confusões em larga escala, então têm incentivo para prevenir homicídios e rebeliões. Elas querem lucrar e reconhecem que mantendo certa ordem podem fazer isso”, afirmou Skarbek em entrevista à BBC Brasil em Londres.


Isso permite entender, diz ele, como lugares em que a população carcerária explodiu passaram a ter sistemas prisionais mais “calmos”, com menos motins e homicídios.


Um retrato desse fenômeno, diz Skarbek, se dá na Califórnia, foco principal de sua pesquisa. O Estado americano quintuplicou sua população carcerária desde 1970 (de 25 mil para 130 mil), mas a taxa de assassinatos de presos caiu quase 100% no mesmo período, que coincide com o boom das gangues.


Ou em São Paulo, também alvo dos estudos de Skarbek, que diz ver sentido na hipótese que identifica o PCC como principal responsável pela queda de 73% nos homicídios no Estado desde 2001 – nessa interpretação, a facção transpôs às ruas as regras de controle da violência que criara nas cadeias.


No caso de São Paulo, por exemplo, não houve rebeliões nas 82 penitenciárias do Estado em 2014 e em 2015, e apenas duas neste ano. O governo não forneceu dados de anos anteriores, e nega que a paz relativa nas cadeias do Estado seja resultado da ação de gangues – cita medidas como treinamento de agentes, regime diferenciado para presos perigosos e uso intensivo de tecnologia.


Como a economia explica a sociedade

Skarbek é um discípulo de uma escola de pensamento conhecida como teoria da escolha racional, que busca explicar o comportamento humano como resultado de decisões tomadas por atores econômicos.


Ele já tinha usado a teoria econômica, por exemplo, para entender por que escravos africanos iniciavam poucas revoltas quando eram transportados aos montes em navios negreiros – dados mostram que apenas 2% a 10% das viagens transatlânticas registraram motins de 1750 a 1775.


Quando mais escravos, mais provável seria uma revolta, certo? Na verdade era o contrário: barcos menores e com menos escravos registravam mais motins. Isso se explica, diz Skarbek, por uma questão básica de economia: o problema do caroneiro (free rider), aquele que se beneficia de algo sem ter arcado com os custos daquilo.


“Num grande navio, a possibilidade de um escravo sozinho ser a pessoa decisiva (numa revolta) é quase zero. E como os castigos eram brutais, o escravo se colocava em alto risco ao se revoltar”, afirma. Em barcos menores e com menos escravos, portanto, era mais fácil evitar os “caroneiros” e incentivar a participação em motins.


Origem das gangues

Aplicando essas ferramentas ao mundo do crime, o professor procurou responder uma questão básica: por que existem gangues nas prisões hoje e não havia no passado?


Nas cadeias dos EUA, por exemplo, não havia gangues nos anos 1950. Em 1985, eram 114 gangues ativas em 49 Estados, com quase 13 mil membros. Em 1992, essa população havia triplicado para 46 mil, e hoje é estimada em 308 mil – quase 15% do total de detentos.


Ao analisar uma montanha de dados (estudos e relatórios, histórias de presídios, dados desclassificados do FBI, biografias de presos e carcereiros, inquéritos e peças judiciais), Skarbek concluiu que, no caso da Califórnia, houve uma mudança na “gestão” das prisões pelos detentos.


À medida que a população carcerária cresceu e as prisões se tornaram maiores e mais diversas racial e etnicamente, uma forma mais descentralizada de autocontrole, baseada no antigo “código do prisioneiro”, perdeu espaço para a mão de ferro centralizada das gangues.


“O Código do Prisioneiro era basicamente um guia informal de comportamento: não roube, pague suas dívidas, não mexa em assuntos dos outros. Se você o seguia, estava numa posição boa, tinha apoio mútuo. O que importava era a reputação do preso. Mas isso se tornava frágil e falho em prisões com milhares de detentos, onde é impossível acompanhar todos”, diz Skarbek.


Um novo detento pode se surpreender com o nível de controle das gangues. No norte da Califórnia, por exemplo, a gangue hispânica Nuestra Família usa linhas de pescar para enviar questionários às celas dos novatos.


Sem saída

O livro conta uma história de um detento latino para ilustrar o dilema de presos quando chegam a presídios tomados por gangues.


Com pouco conhecimento de inglês, Juan Pablo Reyes cumpria uma sentença curta por ter ameaçado a mulher. Como não era membro de gangue nem criminoso perigoso, foi encarregado de fazer pequenos serviços no presídio.


Um dia, um carcereiro o acusou de furtar cartas alheias. Ele negou, mas agentes disseram que só o perdoariam se ele delatasse presos que portavam drogas. Reyes disse que não conhecia ninguém e foi espancado pelos agentes.


Depois foi levado, nu, a uma ala com membros de uma gangue hispânica que tinha como regra atacar detentos latinos não-americanos. Acabou sofrendo agressões tão graves que foi colocado em liberdade dois meses antes do previsto.


“O incidente ilustra uma das razões pelas quais presos buscam formas alternativas de gestão: você não pode sempre confiar nos guardas”, escreve Skarbek.


Como muitos outros grupos mafiosos, as gangues prisionais surgiram para oferecer proteção. Cadeias são ambientes hostis (em 2011, 64% dos presos na Califórnia tinham condenações por crimes violentos, como estupro e homicídio) e muitos criminosos fora do sistema prisional preferem pagar “taxas de proteção” para gangues mesmo antes de ir – ou voltar – para a prisão.


No caso de bandidos perigosos, como tendem a cumprir sentenças mais longas, há forte interesse em garantir proteção a longo prazo na cadeia. As altas taxas de reincidência (acima de 50% em 1994) também oferecem incentivos para criminosos continuarem a pagar essas taxas em liberdade.


“Na Califórnia, o detento não tem alternativa a não ser se ligar a seu grupo racial, que está organizado em gangues de rua ou prisões. Se você tentar seguir sozinho, será logo alvo de ataques. Esse é o dilema que leva as pessoas a se aproximar dessas gangues”, afirma Skarbek.


“Quando são presos, hispânicos no sul da Califórnia sabem que a máfia mexicana controla as cadeias. As gangues, basicamente, conseguem ameaçar pessoas que não estão na prisão: vocês sabem que estarão detidos em algum ponto, colocaremos seu nome na lista, se não pagar taxas sobre suas vendas, vamos te atacar quando for preso”, completa.


Mecanismo semelhante atua no caso do PCC, que tem presença em 22 das 27 unidades da Federação e arrecada ao menos US$ 50 milhões por ano, segundo dados coletados por Skarbek. A facção possui seus próprios “tribunais do crime” e os “disciplinas”, membros designados para lidar com filiados que não obedecem suas regras.


Comércio ilegal

Gangues florescem quando o governo não consegue suprir suas necessidades – sejam elas de segurança ou de consumo. Em um ambiente de escassez, o comércio – de itens como telefones, cigarros e outras drogas – adquire uma importância chave. O departamento prisional da Califórnia confiscou 12.151 celulares só em 2013, o que dá uma ideia da dimensão desse mercado.


“Na Califórnia, você não pode fumar nem usar celular nas cadeias. Significa que se você quiser usar tabaco, terá que recorrer à economia subterrânea, controlada pelas gangues. Ao proibir o fumo, criamos uma oportunidade de lucro para gangues. Presos demandam certas amenidades, e se a prisão não provê, seja tabaco, segurança ou telefone, presos irão canalizar essa demanda para a economia subterrânea, mandando mais dinheiro e influência para as gangues.”


Campeões de encarceramento, com respectivamente a primeira (2,2 milhões) e quarta (622 mil) maior população carcerária do mundo, Estados Unidos e Brasil estão usando a receita errada para combater as gangues, avalia Skarbek.


A estratégia equivocada, diz ele, é motivada pela crença de que o problema das gangues, para usar o jargão econômico, é de oferta, ou seja, pessoas más que fazem coisas ruins. Nesse raciocínio, a saída seria “suprimir” essas pessoas, colocando-as em unidades separadas, de alta segurança.


“Transferir essas pessoas, e conheço resultados no Brasil e nos EUA, não resolve o problema. Pode levar as gangues para outras cadeias, como num câncer em metástase, e outros assumem o lugar dos que são transferidos. Temos gangues por todo o sistema, apesar dessas estratégias. É um fracasso.”


Para Skarbek, é preciso que as prisões sejam menores e mais seguras. E ele vai além ao afirmar que é preciso pensar soluções para cortar as fontes de recursos das gangues.


“Acho, por exemplo, que devemos deixar presos fumarem ou usarem cigarros eletrônicos. Tecnologicamente podem criar telefones especiais para detentos”, afirma o especialista.


No caso das drogas ilegais, ele reconhece que é um assunto polêmico, mas cita o caso de um ex-carcereiro que defende a liberação nas prisões e cita unidades em países nórdicos que oferecem opióides a detentos viciados.


“Não estou defendendo isso, mas se fosse o caso, agentes prisionais poderiam prover maconha e opiáceos de graça, de forma legal e num ambiente controlado, com efeitos negativos limitados para quem está fora. Quando a receita diminui, membros de gangues teriam menos em jogo. Parece algo de ficção científica, mas é preciso pesar todos os custos e benefícios”, diz ele.


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